Em um momento marcado pelos atos de violência ocorridos em Paris no mês de Janeiro de 2015 que vitimou diversos redatores e cartunistas da revista francesa Charlie Hebdo veio à minha mente, no calor apaixonado das discussões e das - esperadas - reações dos líderes políticos mais diretamente envolvidos, a magistral obra do historiador francês Fernand Braudel "Grammaire des Civilisations' publicada em 1987, dois anos após a morte do seu autor.
Nesta obra verdadeiramente enciclopédica Braudel traça um rico painel do estudos das civilizações desde os primeiros tempos, enfocando a compreensão do termo 'civilização' sob aspectos econômicos, socilógicos e psicológicos.
Em apertado resumo, Braudel mostra que a história é, essencialmente, a história das civilizações e, nesta vertente, os choques e as influências que uma civilização exerce sobre a outra, a sua continuidade, seus processos de adaptação e mudanças, de aceitação de padrões ou de sua completa rejeição, formam o substrato indispensável para se entender a existência da humanidade desde seus primórdios.
O episódio parisiense é, a exemplo de milhares de outros que o anteceram, uma manifestação do processo sempre estressante do choque civilizatório. Epigrafá-lo como um ato de terror, embora não seja inexato, por todo, é simplificá-lo ao extremo e empobrecer a análise efeticva do fato histórico em exame.
A questão religiosa, o sistema de crenças de uma civilização, constituem elemento que pertence à estrutura fundamental de uma civilização (underlying structures) como ressalta Braudel. Também para John Gray ('Missa Negra', Ed. Record, 2009) a 'história da política é apenas um capítulo da história da religião'.
Assim, se por um lado agita-se com a bandeira da 'liberdade de expressão' como elemento essencial da liberdade, esquece-se que na mesma estrutura racional-jurídica a liberdade de credo e de religião também se insere no mesmo patamar. E temos que à liberdade de credo corresponde, igualmente, o respeito ao credo e a religião praticados por quem quer que seja.
E aqui vale a advertência de Braudel, que, ao destacar a questão das estruturas fundamentais de uma civilização, adverte que os acontecimentos do presente, ao catalizarem as paixões e interpretações do momento, cometem o desserviço de esquecer que a compreensão das estruturas básicas de uma civilização demanda a análise de um largo período de tempo do consciente e do inconsciente, gerado por séculos, de imensos grupos humanos.
E dentro deste esforço de compreensão, frisa Braudel, destaca-se a questão religiosa.
Vale transcrever, infelizmente em inglês, porque a obra não foi traduzida no Brasil, o ensinamento deste genial historiador francês:
"To perceive and trace underlying structures one has to cover, in spendthrift fashion, immense stretches of time. The movements on the surface discussed a moment ago, the events and the people, fade from the picture when we contemplate these vast phenomena, permanent or semi-permanent, conscious and subconscious at the same time. These are 'foundations', the underlying structures of civilizations: religious beliefs, for instance, or a timeless peasantry, or attitudes to death, work, pleasure and family life.'
(...)
'These realities, these structures, are generally ancient and long-lived, and always distinctive and original. They it is that give civilizations their essencial outline and characteristic quality. And civilizations hardly exchanged them; they regard them as irreplaceable values.'. (BRAUDEL, Fernand. 'History of Civilizations, Tradução para o ingês de Richard Mayne, Penguim Books, 1993, pág. 28).
Esta compreensão leva a pôr em dúvida sincera a validade dos atos praticados pela revista parisiense. Não seriam tais atos a estéril insistência e arrogância de pretender desprezar, vilipendiar e criticar valores essenciais para uma civilização - no caso a muçulmana - tão digna de respeito como a civilização do Ocidente? Não seria a perpetuação dos equivocos que são cometidos neste terreno desde o século XI?
Braudel parece ofertar uma receita de entendimento sobre o tema. Ou ao menos a advertência de que não devemos, a respeito de uma questão tão antiga, complexa e plena de nuanças, abraçar a opinião do momento, a versão trabalhada por centros de interesse e de poder.
A morte e a perda de vidas humanas é sempre lamentável e trágica. Mas também aí existe sempre um outro lado a ser analisado.
Em 2014 li com atenção redobrada o livro 'O Homem Fragmentado' de Tibor Moritz que seria um romance de ficção científica, embora, pessoalmente, sempre fui avesso a esta tendência de circunscrever uma obra - qualquer que seja ela - a um certo gênero ou estilo dentre dos canônes classificatórios.
Mas o livro de Moritz é assim classificado e isto me despertou uma curiosidade inegável. Isto porque existe uma certeza sacrossanta que no Brasil não se produz obras de ficção científica. Preconceitos à parte, são, de fato, raras as incursões de autores nacionais. E Tibor Moritz - embora o nome nos faça pensar, talvez, em um ex-soviético com uma barbicha a la Tchekov - é um autor brasileiro de verdade.
O 'Homem Fragmentado' conta a história de um bem sucedido escritor de ficção científica brasileiro - nada de 'alter-ego', registre-se - que, ao perder o filho em um acidente do qual ele se culpa, decide por fim à própria existência. Logo, a estória começa com um suicídio do próprio protagonista. Premissa interessante, não há como negar, e cheia de perigos.
Moritz quebra de logo a nossa primeira certeza. Seria mesmo um suicídio? Ou será que o suicídio que o leitor acabou de ler e testemunhar não seria um delírio compartilhado com o personagem? A continuação da existência do protagonista além da morte e do terrível ato final é que resume, justifica e dá força ao livro.
Não seguirei adiante na trama porque acho que resenha não serve para contar a estória que um autor, laboriosamente, gastou meses, às vezes anos, para completar. Mas adianto que o jogo de imagens e a criatividade de Moritz em criar um paradoxo de encerramento e outro de recomeço foi urdido com delicadeza e bom humor, sem desprezar passagens de puro horror. A discussão vai bem adiante, e é possível ao leitor mais atento pinçar idéias sobre o significado da morte, do vazio existencial que nos consome, máxime quando perdemos alguém que amamos e até mesmo qual o papel desta coisa chamada amor no processo de existência universal.
Neste sentido, 'O Homem Fragmentado' é muito mais que um livro de ficção científica, embora seja inegável perceber, na obra de Moritz, as influências que ele deixa fluir, muito naturalmente, na concepção do seu enredo. Os ecos de autores como Philip K. Dick, Robert Heinlein, Ray Bradbury e Richard Matheson são evidentes. E só fazem enriquecer o livro.
A narrativa flui com bom compasso, alternando quadros muito bem entrelaçados, com destaque para a excelente distopia em que a sociedade vive em um estado totalitário e presa em um engarrafamento. A primeira parte é rotina, mas a segunda é um achado e tanto!
Talvez em certas passagens haja excessivos dialogos interiores do protagonista que, ao descobrir que a morte é, bem, meio diferente do que pensamos, faz a si mesmo perguntas demais. Penso que Moritz quis situar ao leitor por esta vertente os questionamentos nodais do livro. Mas em uma narrativa tão eletrizante, estes bolsões repetitivos - raros, registre-se - travam a fluência do texto e comprometem sua espontaneidade.
No mais, 'O Homem Fragmentado' é, com certeza, o melhor texto de ficção científica nacional - para agradar os classificadores - que já li. Recomendo fortemente e aguardo pela proxima surpresa de Tibor Moritz.
Faz tempo ouvi uma anedota que dizia que o 'cúmulo da rebeldia' é o sujeito que mora sozinho e foge de casa.
Por outro lado, Oscar Wilde escreveu que a rebeldia aos olhos de qualquer pessoa que tenha estudado um pouco de História, é a virtude original do ser humano.
Aos cinquenta anos, as pessoas se tornam ainda mais conscienciosas de que a rebeldia não é ou não deve ser um tópico a ser pensado e nem muito menos falado. Senão, nós, os cinquentões, ante qualquer rasgo de inquietude, corremos o risco de ouvirmos advertências que se expressam mais ou menos assim: que é isso, cara, você já passou da idade!
Pois eu não passei de idade nenhuma! Acredito que a única idade que eu terei será aquela na qual a morte me flagrará. Terei setenta ou setenta e cinco ou oitenta, a depender da hora. E só esta idade. Aquela que vai constar do meu atestado de óbito. No mais, tenho e terei todas as idades que desejar.
Ando com vontade de praticar umas rebeldias aqui e ali. fazer caretas, peidar nos elevadores, tocar Deep purple em alto volume madrugada à fora. Sou, na verdade, uma vergonha para Oscar Wilde. Minhas ambições de inconfidência são pueris e estúpidas.
Mas em minha defesa, digo o que o bardo inglês não podia prever: sou estúpido e patético porque todos os outros que me rodeiam também o são. Ou vai dizer que você tambémnão está de saco cheio do seu trabalho, dos amigos (ou ao menos de boa parte deles), dos parentes inconvenientes e sanguessugas? E o que dizer da religiosidade midiática, dos combatentes pela moralidade, das minorias exploradoras, dos mentirosos de plantão?
Portanto, como sou muito pequeno ou não sou nada, meu grito de rebeldia é proporcionalmente equivalente à minha condição.
Assim, preparem-se que da proxíma vez vou acender um cigarro em ambiente fechado, dar um sonoro arroto depois de almoçar, queimar meia dúzia de clássicos da literatura universal (Código da Vinci, Crepúsculo etc) e, enfim, embarcar para bem longe - Itália, me agrada, devo dizer - e mudar de nome e sobrenome... até a morte chegar.
Porque aí, como dizia Niemayer, fudeu...
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