E tudo foi aos poucos se desfazendo...
Eu tinha minha velha casa
E nela minha mãe, meu pai e minha babá
Que me viu crescer além dos quarenta
Mas que nunca deixou de me mimar.
Tudo isso eu tinha e era mais que certo,
E também uma TV em preto e branco
Graças a quem me tornei íntimo
Dos Flintstones e do Super-Homem.
Tudo isso eu tinha
Mas aos poucos a tinta esmaeceu
E quando os olhos se abriram
O que era meu num risco se perdeu.
Eu tinha um dom Quixote etéreo
Que em mim vivia, nos anos primeiros
Engendrando aventuras e destemperos
Insanamente crendo que o mundo
Estava disposto a prestar atenção.
E exatamente porque não estava, o mundo
Fez das minhas donzelas imaculadas
Bruxas destrambelhadas, que, sábias
Seguiram seu rumo para longe da Mancha.
Eu tinha, eu era, esse cavaleiro andante
E de súbito, em brevíssimo instante,
Fui apeado do meu fiel Rocinante
Com as costelas partidas e sem dentes.
Tudo isso por certo tempo foi meu
Mas aos poucos foi se desvanecendo
As rugas e os cabelos brancos chegando
Percebi então que era o tal do tempo
E sua alcateia de lamentos, espreitando...
Onde hoje acampo não tem mar, planície
As ondas que rugem são as do meu só pensar
Não há riscos de tormenta, Tsunami não há...
Mas ainda assim tudo se dissolveu
E o que resta é um amontoado de saudades
E quiçá um pedaço desmontado do meu eu...
Mas este eu desconjuntado, ultrapassado
Fica à parte do (des) espetáculo, parado
Pensando se vale a pena refazer na areia
O castelo na infância arquitetado.
Mas se tudo em si mesmo se perdeu
Então...
Que eu desvaneça também.
Não quero ser ingrato com o tempo
Que tanto tempo passou
Para enfim me fazer ninguém.
Crédito da imagem: https://istoe.com.br/o-tsunami-da-inflacao/