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TANGO CINZENTO

Se alguém dissesse a Mira que se ouvia tango da varanda sobre a pracinha, ela sorriria e não levantaria da cadeira em frente à televisão, seu refúgio dia e noite.

O pequeno apartamento lhe deixara Xavier, único bem depois de anos na noite, anos mal dormidos e febris, sob os tons ora alegres de La Cumparsita, ora sob o lamento ferido de Cuesta Abajo.

Queria Mira ouvir, de novo, o tango. Não se apreciava aqui aquela música cheia de entranhas. Xavier sentiu essa indiferença e, perto de morrer, compôs um tango – o único – e chamou-o de Tango Cinzento, porque, disse, cinzenta era a cor de toda a saudade.

Um dia iremos a Buenos Aires, dizia. Não foram. Mas nas paredes da quitinete, fotos do Caminito e de cafés sem nome evocavam a cidade. Mira guardou as partituras do Tango Cinzento, e olhando-as, pensava como seria; triste ou alegre, leve ou docemente arrastado, como uma jura de amor? Nunca o ouvira, assim como não fora a Buenos Aires.

Se alguém agora lhe jurasse que se ouvia tango da varanda, ela não faria nada. Talvez lembrasse do Tango Cinzento e da nostalgia de Xavier. Mas Buenos Aires é tão longe e, de todo modo, talvez lá também todos os tangos sejam cinzentos.



alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 22/03/2007
Alterado em 27/09/2012


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