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Contradança
CONTRADANÇA

Para Pedro e Alexandre

O rosto que Oscar via no espelho não se parecia com o rosto que imaginava ter. Aquela face cansada, derreada em uma queda brusca de anos e pesos insondáveis, não fazia honra ao espírito resoluto que lhe agitava o corpo. Era, por certo, uma ofensa e uma zombaria. De qualquer modo, inchou as bochechas, como um menino travesso e depois sorriu, esquecido do aborrecimento. Ajeitou a gravata azul marinho sob a camisa branca e deu um último puxão no terno cinza escuro, ajeitando-o com mais precisão ao redor do corpo. Estava bem, sim, satisfatoriamente bem, para um homem de sessenta e cinco anos. Apesar da face cansada que lhe espiava, zombeteira, do recôndito do espelho.

Olhou o relógio e vendo que já se aproximava seis horas da noite, apressou-se em seus preparativos. Colocou um pouco de perfume – só nos pulsos e atrás das orelhas – apagou a luz do banheiro e saiu para a pequena sala do apartamento de dois quartos. As partituras estavam sobre a mesa; deu uma última olhada e concluiu que a seleção estava perfeita. Músicas românticas, delicadas em seu desenrolar, evocativas de um sentido próprio para uma noite como aquela. Dia dos Namorados. Dia de noite agitada, prolongada até as barras da manhã seguinte. Voltar para casa só bem cedinho, lá pelas cinco ou seis da manhã, isto se o último baile não fosse daqueles em que os casais, entontecidos de amor, pedissem bis, atrasando a música final, num prolongamento de danças, beijos e sussurros. O mundo mudara muito desde que começara a tocar piano por profissão, lá pelo final dos anos cinqüenta; época de muitos bailes pela cidade, festas com crooner e orquestra, salões cheios, principalmente nas sextas-feiras e sábados. Depois, veio o rock, Jovem Guarda, umas músicas diferentes, que faziam com que as festas ficassem cada vez mais esquisitas, com gente pulando e saltando, de um lado para o outro, sem harmonia nem elegância. Apesar de tudo, ainda restava quem apreciava uma boa música, festa com dança de rosto colado, um piano ao fundo, uma orquestra, um salão amplo para se dançar e sonhar. Prova disto é que hoje, tantos anos depois, ele teria uma noite cheia; de saída, uma happy hour em um hotel antigo, daqueles que ainda possuem um bar com mesas em reservado, chão com carpete fofo e vermelho, e em um estrado à parte, quase escondido para não invadir a intimidade dos clientes, um piano de cauda dos bons, um Steinway, onde ele deixava fluir pelo ambiente aconchegante, um pouco de Cole Porter, Irving Berlin e Tom Jobim. Há quase dez anos ele tocava no hotel. De terça a sexta-feira. Depois, lá pelas oito horas, outro piano à sua espera, agora em um bar que vivera seus tempos áureos há uns vinte anos atrás, mas que ainda se mantinha aberto, desafiando mudanças e discursos, lugar onde ele encontrava caras familiares, gente de quem conhecia, de cor, os sorrisos e gostos, uma predileção por esta ou aquela música, embora às vezes nem soubesse seus nomes. No final, um jantar dançante em um clube, convite que lhe fora feito por indicação de um músico amigo que, escalado para tocar piano, teve que declinar do trabalho por causa de uma gripe renitente. Ficou triste pelo amigo, companheiro de longa data; mas não podia negar que o convite caiu bem, porque o cachê era bem interessante.

Colocou as partituras sob o braço, e saiu, fechando a porta três vezes com a chave e mais duas vezes a fechadura adicional que mandara colocar mês passado, depois de notícias de roubo no prédio. No corredor pouco iluminado, cruzou com Dona Gerusa, do trezentos e quatro, tão antiga ali quanto ele, moradores desde os primeiros dias do prédio. A vizinha, uma bem humorada senhora de seus setenta anos, piscou o olho, debochada, perguntando onde ia ser a festa, enquanto olhava, com admiração, o solene engravatado. Dia dos Namorados, tratou Oscar de lembrar-lhe, também com um sorriso maroto. Dona Gerusa deu de ombros, indiferente à data. Solteirona convicta, sem arrependimentos. Bateu no ombro de Oscar, elogiou a roupa, e desejou-lhe boa noite, descendo o corredor, abraçada com os pacotes de compras. O elevador, de porta pantográfica e com a cabine revestida de madeirame cor de avelã, chegou rápido, com o seu inconfundível barulho de cabos e correntes sacolejantes. Estava vazio; Oscar entrou e se escorou ao fundo, como era seu hábito, sempre deixando espaço para os outros. Era um homem discreto, mesmo nos instantes em que passava dentro do velho elevador. Chegou à rua e respirou o ar frio da noite que começava. Gostava tanto da noite que, quando jovem, dizia que, dependesse dele, não existiria dia. Só a noite, sempre fresca, menos ansiosa do que as manhãs e as tardes, incendiadas pela estardalhaço do sol. Desceu a rua onde morava – a Siqueira Campos, bem no centro de Copacabana – na direção da Avenida Atlântica, a passos tranqüilos e relaxados; àquela hora, multiplicavam-se os ônibus na avenida Nossa Senhora de Copacabana e os pontos, cheios de mocinhas que trabalhavam nas lojas, camelôs e estudantes abraçadas aos cadernos, diziam que um movimento intenso de ida e vinda, de início e ao mesmo tempo de fim de jornada, espalhava-se por toda cidade. Alcançou a Avenida Atlântica, e tomou o rumo do Posto 6; um quilômetro, mais ou menos, até o hotel, encravado há décadas na frente daquele mar sem tempo, testemunha da chegada dos corsários franceses e das prostitutas de apelido francês. Pela avenida batida pela brisa do início da noite, espalhava-se, pelo calçadão central, uma imensa exposição de quadros; sob a luz amarela dos altos postes, papagaios e araras multicolores, o Cristo Redentor, a silhueta farta do Pão de Açúcar, destacavam-se nas telas de tamanho variado, atraindo a atenção de turistas curiosos que lentamente vagavam naquela galeria ao ar livre. Nas portarias dos vetustos prédios residenciais, empregados observavam, com olhar complacente, o fluxo ininterrupto da cidade acesa. Oscar gostava daquele passeio, da vista que o circundava, dos sons e luzes que o colhiam em cheio durante aqueles poucos minutos de desleixado caminhar. Um passeio que fazia sempre, à mesma hora, uma repetição que lhe enchia de uma energia renovada, inexplicável; de certo modo, sentia-se parte da paisagem agitada de Copacabana, ao menos naquele trecho tantas vezes retomado.

Chegou ao hotel poucos minutos antes da hora marcada, seis e trinta, como anunciava o cartaz ao lado da porta do bar, onde se podia ler: Um piano ao cair da tarde, com Oscar Lara. Em verdade, seu sobrenome não era Lara. Nome artístico que escolhera, em homenagem a Agustín Lara, o pianista mexicano que compusera Granada. Gostava de bolero, embora cada vez tivesse menos chance de tocar os que o encantavam, Granada, Aquellos Ojos Verdes, Acércate Más, as melodias fortes, compassadas, às vezes com um certo tom de tragédia, que palpitavam na memória e na ponta dos seus dedos. A recepção do hotel estava silenciosa, vazia, não fosse por Julinho, o recepcionista da noite, enfatiotado em sua roupa preta com galões e botões dourados, o mesmo uniforme que ele sempre usou desde que começou a trabalhar no hotel, isto há anos passados. O mesmo em termos, porque Julinho, sujeito calmo, generoso e manso, engordara com os anos, e o uniforme crescera junto com ele. Encostou-se na recepção e trocou um breve aperto de mão com o velho amigo. Saudação de amizade e um sinal de que a noite estava começando.

- O seu Botafogo, hein? – comentou Julinho, piscando um olho, gozador – Se continuar desse jeito, vai é para a segunda divisão...

Oscar torcia pelo Botafogo. Gostava de futebol, não tanto quanto de música, mas houve época em que era presença assídua no Maracanã, sempre que o Botafogo ia a campo. Lembrava de 1968, quando o time foi bi campeão e foi convidado a tocar na festa do título. Guardava até hoje a camisa sete, autografada pelo próprio Jairzinho. Fazia muito tempo que não ia ao estádio; nem acompanhava os jogos, os resultados, o sobe e desce das equipes. Ficou meio sem jeito com o comentário bem humorado de Julinho; ele era botafoguense, sim, como fora seu pai antes dele, mas uma distância silenciosa e inexorável o separava daquele homem que vestia a camisa alvinegra e era capaz de passar horas discutindo sobre os lances de um jogo. Dirigiu-se para o bar, e notou que só uma mesa estava ocupada; um casal de meia idade sentados ao fundo, conversavam em voz baixa, os cinzeiros cheios de pontas de cigarro, as mãos ocupadas com outros cigarros que, acesos, enchiam o pequeno ambiente com uma fumaça cinza azulada. Sentou-se ao piano e decidiu esperar um pouco mais, para ver se aparecia mais gente. Apareceu. Um homem vestido em calças largas de sarja marrom, com uma camisa listrada em vermelho, que ocupou a primeira mesa, logo à direita da porta e, com gestos impacientes, chamou o garçom – naquela noite o Tião, um paraibano engraçado que gostava de cantar música de forró – e pediu um uísque. Duplo, fez questão de recomendar. Oscar respirou fundo e começou a tocar; de saída decidiu fazer a sua vontade, e tocou Aquellos Ojos Verdes, em um tom suave, embalador. Não demorou em lembrar de Anita; ela adorava aquela música, embora nunca tivesse aprendido o nome certo: sempre lhe pedia para tocar Olhos Verdes. E ele ria, divertido do erro repetido, relembrava-lhe o nome certo, mas corria ao piano e tocava. Os olhos de Anita ficavam num deslumbre difícil de esquecer; brilhavam graças a umas lágrimas discretas que lavavam o castanho claro das pupilas, e, ao mesmo tempo, pareciam inflados por uma alegria, um transbordamento, que lhe aumentavam, ainda mais, a beleza delicada. Fechou os olhos e percebeu que estava tocando como costumava tocar para ela. Só os reabriu quando lançou a última nota e sentiu que esta se apagava, aos poucos, marcando o fim da música. Voltou a observar o bar; o casal parecia tenso, a mulher especialmente, um descontentamento e uma desilusão claros nos traços cansados de um rosto que não deixava de ser atraente. Já o solitário da primeira mesa dera a murmurar sozinho e a se agitar em espasmos regulares, que o fazia coçar os cabelos ralos e desgrenhados, e a batucar com os nós dos dedos na superfície da mesinha. A primeira música se fora e não chegou ninguém. O homem, depois de dar um riso sem propósito, estalou os dedos com alarde e pediu outro uísque, duplo também. Num deslizar imperceptível pelas teclas, iniciou Brigas, e não pode deixar de lançar um olhar especulativo ao casal; a situação se agravara, agora a mulher abrira a bolsa,  remexendo-a, inquieta, enquanto o homem, parecendo desistir de qualquer investida, jogara-se para trás na cadeira, a cara emburrada. A música fluía, dolorosamente adequada. Tião entrou, trazendo o uísque, e depois ficou à porta do bar, também contagiado pelo marasmo. A mulher, bem no finzinho da música, levantou-se e saiu, com passos fortes. Oscar a acompanhou com o olhar e viu que ela não se dirigiu para a recepção e nem para o saguão dos elevadores; atravessou o hall de entrada e saiu, na direção da rua. Com um leve encolher de ombros, terminou a música.

Depois de mais umas cinco músicas, fez intervalo, o que, aliás, não foi sequer notado, porque, àquela altura, o bar continuava com os mesmos clientes, acabrunhados e esquisitos. Saiu para a recepção, sentindo um ligeiro formigamento nas pernas. A circulação. O médico lhe aconselhara caminhadas regulares, uma certa dieta e medicação. Dos três conselhos, seguira apenas o último, assim mesmo com interrupções. Sentou-se em uma cadeira a um lado da recepção. Tião lhe trouxe uma taça de vinho. Tinto seco. Bebeu um gole reconfortante. Sempre gostou de vinho. Ele e Anita. Em todas as datas festivas, permitiam-se uma extravagância: uma garrafa de vinho tinto, seco e francês. O sabor da bebida, o seu buquê, relembrava-o de Anita e de dias diferentes, irrecuperáveis.

- Oscar... seu Jorge pediu para você ir falar com ele, depois que terminar! Avisou Julinho do balcão da recepção.

Fazia um bom tempo que não via Jorge, o gerente do hotel;  português bonachão, gordo e baixo, com uma cabeça arredondada que parecia uma abóbora. Sem saber porque, o convite lhe soou ameaçador. Não deviam ser boas notícias. Aprendera que na sua vida quanto mais não se lembravam dele, maiores eram as chances de não se ver às voltas com uma chateação. O bar vazio. Aquela ausência de gente e de vida. E logo em uma noite como aquela. Nem terminou o vinho. Voltou ao piano e tentando animar um pouco aquela modorra, atacou com Odeon; à toa, porque ninguém foi atraído ao bar; ao contrário, o homem esquisito, que falava sozinho, acabou por sair. Ficou apenas o sujeito que, ao que parecia, havia levado um fora em pleno dia dos namorados. Oscar terminou tocando para uma seleta platéia de lugares vazios.

- Oscar, meu querido! -  Saudou Jorge, vindo recebê-lo na porta do escritório – Senta aqui... como andas? Nunca mais veio me ver!

Oscar sentou em uma cadeira à frente da mesa de Jorge, as partituras sobre as pernas, angustiado, como um aluno diante de um diretor de escola prestes a lhe dar uma repreensão.  Como ele praticamente não respondia às tentativas –  um tanto desajeitadas – feitas por Jorge em manter uma conversa amena, o português, convencido da inutilidade de insistir, acabou indo direto ao assunto. Aquela seria a última semana de Oscar. Decisão dos donos do hotel, ele, Jorge, nada tinha a ver com isto; até tinha se esforçado para mudar a idéia dos homens, mas sem sucesso. O hotel andava em dificuldades. A taxa de ocupação em menos de quarenta por cento. Culpa da imprensa, afirmou, certo da justeza da conclusão. Só publicam desgraças, violências, chacinas. Ninguém mais quer vir ao Rio. As manchetes sanguinolentas desfilaram diante dos olhos de Oscar. Pensou em comentar que era um exagero; ele mesmo, nascido e criado no Rio, nunca tinha sido assaltado. Mas, concluiu, de que iria adiantar? Talvez ele fosse um abortado de sorte, nada mais. O que importa são as estatísticas, elas que determinam o futuro dos viventes. E ele não significa nada nas tais estatísticas. Jorge abriu a gaveta da mesa e tirou de lá um envelope. Passou-o às mãos de Oscar, dizendo que era uma gratificação que os donos do hotel haviam mandado lhe dar, além de um muito obrigado pelos serviços prestados. Ele recolheu o envelope, um sorriso constrangido, e guardou-o no bolso interno do paletó, sem nem se dar ao trabalho de contar. Jorge debruçou-se sobre a mesa e, em um tom baixo, ornado por um sorriso cúmplice, disse que ele estava autorizado a vir ao hotel como sempre, de terça a sexta-feira, para jantar. Ele, Jorge, tinha decidido. Afinal, todo mundo iria sentir falta dele, caso ele sumisse de vez. Amizade é amizade, afirmou, com autoridade militar. Oscar sorriu, mas não disse nem sim nem não. Só consultou o relógio, agradeceu, apertou a mão gorducha de Jorge, e saiu. Atravessou a recepção com passos vagarosos; despediu-se de Julinho e Tião com uma saudação casual, nada que indicasse uma despedida. Na calçada, consultou o relógio e viu que ainda sobrava tempo para o próximo compromisso. Rumou na direção da avenida Barata Ribeiro, onde ficava o ponto de ônibus. As ruas internas de Copacabana, menos iluminadas que as vias principais, escondiam na semipenumbra homens e mulheres dormindo sob marquises e em cantos, mas também rebrilhavam, aqui e ali, com as luzes dos anúncios das lojas e a agitação dos botequins, todos já cheios de gente, jovens em sua maioria, sentados nas pequenas mesas ou espalhados pela calçada, copos de chope nas mãos, falando alto ou em silêncio, aquele silêncio de beijos e abraços, tão adequado em uma noite como aquela. Parou na banca de revista, deu boa noite ao Juvêncio, o dono, e seu antigo conhecido, sempre uma prosa depois que saia do hotel, e pediu uma carteira de Continental.   Lembrou-se da circulação, da cara séria do médico; pensou em desistir, mas Juvêncio já lhe estendia a carteira. Tomou-a e a guardou no bolso, o mesmo em que pusera o envelope. Sentiu o paletó subitamente pesado, um peso que passou para o seu próprio corpo, como um fardo desconhecido. Juvêncio dizendo que hoje ia fechar mais cedo, iria para casa, jantar fora com a mulher. Comprara-lhe um perfume, que estava sobre o balcão da banca, enrolado num cálido papel vermelho brilhante. Oscar desejou-lhe boa noite, recomendações à esposa e seguiu o seu caminho.

O ônibus não demorou. Ele exibiu seu passe de idoso ao motorista, e tomou lugar no banco reservado junto à porta dianteira. O balançar do veículo deu-lhe um pouco de sonolência. Mas a avenida estava movimentada, o trânsito carregado no sentido da Lagoa e ele logo se deixou atrair pela paisagem agitada. Sentados no banco do lado oposto, um casal bem jovem conversava, as mãos entrelaçadas; a mocinha, magrinha, de cabelos curtos em um tom avermelhado, com a cabeça apoiada ao ombro do rapaz, moreno, com óculos de aro de metal e lentes grossas e um rosto longo e fino marcado por umas poucas espinhas, sobreviventes da adolescência. Eram miticamente ternos, aqueles dois; o rapaz – que se chamava Pedro, assim Oscar ouviu a moça chamá-lo – estava levando-a para que a mãe a conhecesse. Depois, iriam encontrar uns amigos, em um barzinho no Leblon. A mocinha parecia nervosa; na verdade, não propriamente nervosa, mas sim cheia de uma expectativa de futuro, o encontro como uma passagem para um novo capítulo daquela relação tenra e cheia de esperanças. Mas, observando os olhos cor de água da mocinha, também se via uma alegria translúcida; afinal,  ela devia estar pensando, o convite mostrava o quanto ela era importante para ele, sempre atencioso, agora se entretendo em pequenos carinhos nos cabelos da namorada. Passou-lhe pela cabeça uma idéia esquisita; pensou em convidá-los para ir até o bar onde ele iria tocar. Caso aceitassem, dedicaria uma música para eles, talvez Eu sei que vou te amar ou Blue Gardenia. Mas logo a idéia se desfez, em um balançar de cabeça. Por quê convidá-los? Aquela noite, para os dois, estava inteiramente desenhada, sem qualquer espaço para novidades, um mundo fechado e com regras próprias, das quais a mais importante era ser extremamente feliz a cada momento. Ele conhecia esta sensação;   vivera-a várias vezes ao lado de Anita, nos finais de semana em que, sem nada especial a fazer, passavam os dias inteiros juntos, caminhando pela areia da praia, ou então em casa, ele ao piano, ela entretida em fazer arranjos de flores artificiais. Uma artista, Anita. Naquele tempo, o mundo podia ser bem menor e, ainda assim, parecia imenso. Como para aqueles dois. O ônibus começou a descida para Lagoa e Oscar teve a atenção despertada para o reflexo das luzes dos prédios refletidas sobre a superfície imóvel da Lagoa, como pequenos insetos iluminados a flutuar sobre a água. Dois pontos adiante, ele desceu.

Ao contrário do hotel, o bar já estava quase lotado. Oscar se dirigiu ao palco no fundo do salão cumprimentando os outros músicos; Armando, o baixista e Milton, o baterista, companheiros de longa data. Entre eles não era mais preciso sequer ensaios. Sentados em banquetas ao pé do palco, acertaram detalhes das músicas, a ordem em que seriam tocadas. O burburinho das conversas e o contínuo estalar dos copos, garrafas e talheres, levados e trazidos pelos garçons, dominava o ambiente com uma vibração intensa. Oscar às vezes se irritava com aquela zoada; sentia-se meio inútil tocando piano em um lugar em que a música era só um detalhe pouco importante. Mas, o que fazer? Ele mesmo se incomodava com o silêncio constrangedor do bar do hotel. Ali, ao menos, a música caía em um terreno vivo, e ao menos existia a chance, ainda que pequena, de despertar a atenção de um ou de outro. Oito horas. Subiram ao palco, assumiram seus lugares e Armando, sujeito grandão, com uma voz compassada de barítono – Oscar sempre insistira que ele poderia ter tentado ser cantor – fez as apresentações e saudações ao público. Depois, tomou lugar em sua banqueta e começaram a primeira música, um delicado arranjo feito por Oscar para I love you for sentimental reasons. Aos poucos, o barulho cedeu e Oscar, enquanto solava, deixou a atenção flutuar pela platéia. Era um público diverso; homens de terno e gravata, certamente saídos do trabalho, acompanhados por mulheres vestidas de igual maneira – os famosos ‘amores de escritório’ -, casais de meia idade, vestidos informalmente, cheios daquele ânimo de quem está gozando um hiato de contentamento e aproximação, um ou outro casal mais jovem – o bar era mais freqüentado por quarentões e cinqüentões – a se beijarem longamente a cada minuto e algumas mesas ocupadas por duplas de mulheres e homens sozinhos, espécimes à parte naquela noite tão característica. Oscar reteve a atenção justamente neles; sentia uma compulsiva simpatia por aquelas pessoas deslocadas, marginais até, e intuía que eram exatamente elas que mais prestavam atenção à música, porque estavam com o espírito aberto, vazio, como um imenso canal por onde cada canção podia livremente fluir e repercutir. A segunda e terceira músicas, Corcovado e Ternura Antiga, arrancaram alguns aplausos vívidos. Animado, Oscar sugeriu uma música fora do programa: Night and Day, com sua batida irreverente e alegre, suas voltas e rodeios melódicos. Uma música para aquelas mesas de homens sozinhos e mulheres sem homem. Algo que significasse que o tempo é imenso – night and day – e que toda situação é transitória. Era assim que ele via aquela música; era também deste modo que ele a tocava. Quando terminaram, os aplausos cresceram e uma mulher, sentada a uma mesa bem próxima, sorriu e chorou, uma lágrima leve e sem agravo. Night and day.

Quando terminou a primeira parte da apresentação, o bar estava lotado, com casais e grupos de pessoas em pé, aguardando mesa. Fariam um intervalo breve, de no máximo vinte minutos, o bastante para uma refeição ligeira, um cafezinho e um cigarro. Quando se dirigia para a copa, Oscar ouviu alguém chamá-lo com insistência. Voltou-se na direção da voz e viu que era Adilson, também vestido em terno e gravata, o ar conspícuo de advogado ainda visível no rosto avermelhado que, ao mesmo tempo, traía os muitos goles de uísque. Abraçou calorosamente Oscar e elogiou-o por Eu e a Brisa, a música favorita dele, Oscar sabia. Adilson era velho conhecido; um notívago, como ele gostava de repetir, cheio de orgulho. Não passava uma noite sem ir a um barzinho depois do expediente, ora acompanhado da esposa, outras vezes sozinho. Era um sujeito que tinha uma alegria que soava forçada, quase uma exigência que ele fazia a si mesmo. Mas era um bom homem e Oscar ficou satisfeito em encontrá-lo.

- Tenho boas notícias para você. O seu pedido de aposentadoria já foi aprovado. Esta semana acertamos tudo com a Previdência. Não é lá grande coisa o valor... você sabe... você contribuiu pouco... sei lá, deve ficar algo em torno de uns quatrocentos reais... de qualquer modo, é melhor que nada!

Oscar agradeceu. Não fosse por Adilson, em um bate-papo que tiveram ali e ele nem teria atentado para a questão da aposentadoria. Anita sempre dizia, você precisa pensar no futuro, não vai ser jovem a vida toda. Ela ficaria contente com a novidade. Foi pensando nela que um dia decidiu juntar uma pilha de carnês da Previdência e foi até o escritório de Adilson pedir para que ele desse uma olhada em seu caso. Escritório bonito, três salas amplas em um prédio do centro, a sala de espera cheia de clientes. Oscar lembrou que ficou um pouco nervoso, não era habituado a ambientes tão formais. Mas deu certo. Ele ia se aposentar. Quatrocentos reais por mês. Pouco, talvez, mas suficiente para ele, pessoa de poucos gastos.

- Passa segunda-feira lá no escritório – pediu Adilson, despedindo-se – Explico tudo com mais calma... ah, posso pedir uma coisa? – claro que sim, Oscar pensou qual seria a música que ele queria ouvir – Se for possível... toca Chove Lá Fora... Oscar, quando você toca essa música, meu amigo, eu me arrepio, de verdade – e estendeu o braço, a prova do arrepio e da emoção.

Na copa, Armando e Milton jantavam, um prato de filé ao molho madeira, purê de batatas e legumes. Oscar tomou seu lugar a um canto e o garçom trouxe seu prato. Comeu com apetite moderado, sentindo muito mais gosto na taça de vinho do que propriamente na comida. Anunciou que ia tocar Chove Lá fora, pedido de um cliente especial. Os dois não disseram nada, entretidos na refeição. Depois que terminou, tomou um café expresso e foi para a entrada do bar, acender um cigarro. Entre uma apresentação e outra, nunca dispensava um cigarro, e a carteira intacta de Continental pareceu-lhe providencial. Era um homem aposentado agora, e, de certo modo, os cigarros pareciam menos ameaçadores. Sob o toldo branco e encurvado da entrada, à semelhança de um caramanchão,  ficou fumando vagarosamente, sentindo o odor do fumo envolvê-lo; o movimento aumentava e o manobrista debatia-se com uma fila de veículos para estacionar. De dentro do bar, saiu Armando, um cigarro no canto esquerdo da boca, e uma acompanhante do lado direito. Era uma mulher jovem, aí por volta dos vinte e cinco anos, o corpo abundante em um vestido preto que lhe valorizava as formas. Pareciam os dois embevecidos; ele beijava-lhe a orelha, o rosto ocultando-se na cortina sedosa dos cabelos castanhos; a mulher sorria, e retribuía os carinhos, deslizando as mãos longas e delicadas pelo rosto forte de Armando.Oscar jogou fora o cigarro, subitamente enfastiado. Há quanto tempo conhecia Armando? Nove, dez anos? O fato é que sabia que ele era casado; já fora algumas vezes à sua casa, em aniversários e outras reuniões, e conhecia a esposa dele. Marta. Uma mulher simpática, de boa conversa, uma cozinheira de mão cheia, como o próprio Armando gostava de lembrar. Sentiu-se mal de estar ali e, embora faltassem alguns bons minutos para o reinício, decidiu entrar, passando o mais discretamente possível pelo apaixonado casal que, envolvidos num beijo prolongado, nem notaram sua presença. Não sei porque me incomodo, pensou deixando-se distrair pelo burburinho do bar, cada um sabe o que é certo. Porém, mesmo assim, a cena ficou repassando em sua mente, como um palavrão que magoa a alma.

Passava das dez horas quando tocaram a última música, Se todos fossem iguais a você. Uma música que, por mais que ele tocasse, sempre lhe parecia diferente, reveladora de surpresas e espaços desconhecidos. Um pouco apressado,     dirigiu-se para o ponto, olhando para a avenida tentando ver se o ônibus 415 vinha próximo. Nem sinal. Pensou em tomar um táxi; a lembrança do dinheiro que recebera animando aquele gasto adicional. Não queria chegar atrasado ao clube. Uma buzina despertou-lhe a atenção; parado em frente ao ponto, um Gol buzinava insistente. Ao se aproximar do meio fio, Oscar viu Armando ao volante.

- Entra aí, Oscar. Te dou uma carona!

Pensou em recusar, mas Armando abriu a porta do carona, fazendo irrecusável o convite. Oscar entrou, um tanto acanhado, e o carro saiu com uma leve cantada de pneus.

- Já vai para casa? Perguntou Armando, ligando o rádio e deixando a voz menina de Nara Leão cantando Meditação quebrar o silêncio.

- Não, tenho ainda que fazer um baile. No Catete. É fora do seu caminho, Armando. Me deixa em Botafogo que eu me viro!

- Que Botagogo o quê, homem! Tô indo pra Tijuca, te deixo no Catete numa boa – olhou para Oscar e riu, divertido – Faturando horrores, hein? Hoje é uma noite boa! Todo mundo de coração quente, querendo chamego... vou te dizer uma coisa, eu gosto mais do Dia dos Namorados do que de Natal. Você viu lá no bar? – e piscou o olho, com malícia – Menina linda, Oscar. E na minha, completamente na minha!

Oscar sentiu-se oprimido dentro do carro. Oprimido e indeciso. Conhecia Armando há alguns anos, mas não podia se considerar como um amigo, amigo no sentido de ser alguém com quem se troca confidências e a quem se tem liberdade suficiente para se dizer o que pensa, custe o que custar. Mesmo assim, decidiu arriscar.

- Toma juízo, Armando. Aquela moça tem idade de ser sua filha. Além do mais, Dona Marta é uma mulher tão distinta! A voz lhe saiu presa, pesada, uma síntese do mal estar que sentia em dizer aquilo.

- Oscar... entenda, é difícil resistir. Esse negócio de poder ser minha filha é bobagem. Números, Oscar, só números. Eu tenho quarenta e cinco anos, cara. Sou um homem jovem ainda, e se você quer saber, eu me sinto melhor do que quando tinha trinta. De mais a mais, daqui a pouco eu vou ser velho, velho mesmo – olhou de soslaio, envergonhado do que dissera – Você entende... esta menina pode ser a minha última chance de viver uma paixão... de me sentir vivo por completo... você acha que dá para deixar passar?

Oscar não disse nada. Pelo vidro da frente, caso se inclinasse um pouco para o lado direito, podia ver a silhueta do Cristo, a iluminação envolvendo-o em um halo místico. No rádio, Cazuza cantava Todo Amor que Houver nesta Vida. Sentiu-se, com certa surpresa, frágil e melancólico. Apesar do tráfego intenso, não demoraram a alcançar o destino. Com um muito obrigado, desceu do carro e, antes que este se afastasse, Armando, inclinando-se até a janela, disse, a expressão séria e sincera:

- Seja feliz, homem! É o que importa!

Oscar ergueu as partituras, à guisa de despedida, e atravessou a rua. Não se sentia infeliz; porém, felicidade é um assunto serpenteante, cheio de curvas e recurvas, de caminhos e atalhos incontáveis. Nada que alguém possa estar certo à primeira vista; uma idéia que admite uma certa convivência, mas nunca um conhecimento total. O clube ficava nos limites entre o Catete e a Glória e ele chegou lá em alguns minutos. Era um prédio antigo, com uma fachada pouco conservada, mas onde se podiam notar detalhes de acabamento que sugeriam que, em tempos passados, o lugar havia sido um endereço de luxo. Apresentou-se na portaria a um sujeito alto e corpulento, vestido em um paletó preto surrado, que mais parecia um leão de chácara do que um porteiro. Depois, subiu uma escada de degraus estreitos, chegando ao salão principal que, àquela hora, já se encontrava circundado por uma linha de mesas em volta de um amplo quadrado central. A pista de dança. Não perdeu tempo; foi até o palco onde a orquestra começava a tomar lugar e identificou, sem dificuldade, o maestro,  que não devia ter mais de trinta anos – o que impressionou Oscar – magro, com um rosto estreito, olhos vivos e nervosos. Ele o recebeu com entusiasmo, mostrou o piano, a um lado do palco, e explicou, um tanto nervoso, como iriam atuar: a orquestra abriria o baile, tocaria as músicas do seu programa e ele entraria nas pausas da orquestra, isto a cada meia hora mais ou menos. Oscar assentiu, a rotina já conhecida. O maestro – que a esta altura já se apresentara, Tomás – comentou, mais tranqüilo, que estava curioso por conhecer Oscar. Contou que a orquestra não era do Rio, mas do interior, de Campos, e era a primeira vez que vinham à capital; estavam todos ansiosos por uma boa estréia porque, assim, outros convites poderiam surgir. As coisas não andavam bem, cada vez mais difícil preencher a agenda. Ele herdara a orquestra do pai, que fora maestro por quase cinqüenta anos. Tempos melhores, as orquestras admiradas e requisitadas. Oscar notou nos olhos dele uma nostalgia incompreensível, uma saudade de um tempo que ele sequer conhecera.

- Disseram que o senhor é muito conhecido na noite. Que já tocou com muita gente boa, Tom Jobim, Maísa,... – olhou na direção de dois outros músicos que apreciavam a conversa e chamou-os – Estávamos curiosos para conhecer o senhor... ouvir alguma história sobre os bons tempos...

E ficaram os três ali, parados, como se contemplassem uma vitrine. Oscar, de início, sentiu-se uma relíquia, uma criatura anacrônica diante daquela inspeção. Mas, que fazer? Contou sobre uma excursão a Buenos Aires, que fizera com os Cariocas, Marisa e a orquestra do maestro Cipó. Foi em março de 1964 e ele nunca tinha ido ao exterior. A viagem foi um êxito; apresentaram-se em teatros e casas noturnas. Lembrou de como lhe agradara Buenos Aires: a rua Florida, o teatro Colon, as casas de tango, os cafés sempre cheios. Estava recém casado e sentiu falta de Anita. Mas comprou para ela um monte de presentes, perfumes principalmente. Quando voltaram o país mudara. Pareceu a todos que haviam viajado não algumas semanas, mas muitos e muitos anos. A história rendeu olhares de respeitosa admiração. Mas logo, para alívio de Oscar, eles se afastaram, para começar o baile, o salão e as mesas quase inteiramente ocupados.

Oscar sentou-se a uma mesa junto ao palco e pediu uma taça de vinho. Aguardaria ali a sua vez. A orquestra começou com Love is a Many Splendored Thing e ele reviu William Holden e Jennifer Jones, o primeiro filme que viu com Anita, em uma tarde de domingo, no cine Odeon. Anita chorou, como sempre fazia em filmes românticos; ele, por sua vez, passou o tempo todo assoviando baixinho a melodia. Gostava daquela música, embora não a tocasse no piano. Era uma daquelas músicas que exigia a grandiloqüência de uma orquestra. Em seqüência, Beguin the Beguine e Conceição. Alguns casais já ocupavam a pista, o deslizar dos pares pelo soalho, uma visão que sempre atraía sua atenção. Distraído não percebeu que alguém se aproximara da mesa.

- Oscar...

Voltou-se na direção da voz, tímida, e viu uma mulher de pé ao lado da mesa. Oscar notou que a conhecia, ao menos de vista. Mas o problema de lembrar-se de um rosto e de logo identificá-lo persistia. No entanto, acostumado com esta situação, levantou-se e fez um cumprimento que, tinha certeza, devia ter parecido desajeitado, convidando-a a sentar. A mulher – uma simpática senhora de seus cinqüenta e tantos anos, cabelos curtos e levemente grisalhos, um rosto redondo e vívidos olhos verdes-sorriu e sentou-se. Oscar ficou imaginando, naqueles breves instantes de silêncio, o que teria levado aquela senhora a vir até a sua mesa. Sua pergunta foi logo respondida.

- Logo que cheguei avistei você, no palco. – e seu rosto ficou levemente rubro, dando-lhe um impensável ar adolescente – Você não lembra de mim... – e ela esperou, como se Oscar pudesse dizer que não e até soubesse o seu nome – Sou a Sônia, esposa do Marinho, da Receita. – e uma tristeza perpassou rápida pelo verde dos olhos – Quer dizer, viúva. Marinho faleceu. Fez dois anos mês passado.

A lembrança aclarou-se inteira, como a luz do sol devassando uma cortina. Eram gente antiga na noite, daqueles que raramente perdem um baile. Muitas vezes Oscar os vira, juntos, de mãos dadas, um casal que dava gosto se ver. Chegaram a pedir-lhe músicas e a lembrança, afinada, recordou a música preferida, The Shadow of your smile. Oscar apresentou seus pêsames, apesar de achar que não era um bom momento. Ela agradeceu com um sorriso resignado que deixava supor que a dor da perda já havia sido mitigada pelo tempo. A orquestra começou Strangers in the Night enquanto Sônia pedia ao garçom uma taça de vinho. Deixou o olhar vaguear pelo salão, pela pista agora mais cheia e voltou-se para ele, encolhendo suavemente os ombros.

- Desde que Marinho morreu, nunca mais saí à noite. Baile, então... mas minhas filhas vivem implicando comigo, saia um pouco, mãe;  vá a um cinema, mãe... imagine que até namorar elas já me aconselharam... – fez uma pausa, tomando um gole do vinho – como se fosse fácil... mas quando eu vi que ia ter esse baile eu me animei. Moro aqui perto e pensei que seria melhor do que ficar fechada em casa, vendo novela. As filhas todas casadas, com sua própria casa. E foi muito bom vir; encontrei você, veja só, um velho conhecido...

Oscar sorriu, atraído pelo verde cristalino daqueles olhos. Ela é tão bonita, pensou, receoso de parecer ousado. Mas olhando para as mãos bem cuidadas, para o rosto contemplativo, o olhar pacífico, pensou em convidá-la a dançar. A orquestra começava Besame Mucho e talvez inspirado pela música – perfeita, diga-se de passagem – ou talvez por tudo o que ela subitamente lhe inspirou, fez o convite. Ela não disse sim nem não. Mas a mão estendida com uma languidez elegante e o brilho novo nos olhos deu-lhe coragem de conduzi-la até o salão. Ela dançava bem; com uma suavidade inebriante, uma leveza de pássaro, que parecia introduzir um novo compasso na música. Anita não sabia dançar. Nunca aprendeu, apesar dos seus esforços. E depois de um tempo nem mais aos bailes queria ir. Oscar fechou os olhos, esquecido, enlaçou-a pela cintura e atravessaram o salão, como se fossem velhos parceiros. E continuaram naquele explorar silencioso, muito além de Besame Mucho, porque ainda dançavam quando o salão ouvia All the Way, El Dia que me Quieras e Moonlight Serenade. O maestro, por fim, anunciou o intervalo. Ele a conduziu de volta à mesa, a cabeça leve, o corpo relaxado. Antes de subir ao palco, perguntou-lhe que música ela queria ouvir. Quando ela disse The Shadow of your Smile, um peso estranho constrangeu-lhe o peito. Com um aceno, ele sentou-se ao piano. E atendeu o pedido. Como deve fazer um músico; um pedido é sagrado, mesmo que a música não seja do seu agrado. Ele gostava de The Shadow of your smile, uma música que falava a linguagem do piano. Uma ou duas vezes, enquanto tocava, olhou para a mesa, e viu que um tom vermelho se introduzira naqueles olhos. Um vermelho que dispensava perguntas. Continuou a série de músicas, e achou melhor manter-se concentrado na execução, na alma de cada canção. Parou de olhar para mesa e, quando o fez novamente, lá pela quarta ou quinta música, encontrou-a vazia.

Quando retornou à mesa, encontrou um papel dobrado, sob a sua taça de vinho ainda cheia. Abriu-o e viu apenas escrito um número de telefone, sem nomes, sem nada. Sentiu vontade de levantar e sair dançando, sozinho, no meio do salão, agora que a orquestra voltara com uma agitada S’ Wonderful. Mas ficou quieto, o papel nas mãos. Esvaziou a taça com um só gole e estendeu as pernas, relaxado, pronto para a noite que apenas começava.

O baile encerrou às quatro da manhã. O público, embora composto, em sua maioria, por casais com mais de cinqüenta anos, parecia incansável. Oscar despediu-se do maestro, recebeu o cachê no escritório da administração, desceu as escadas de degraus estreitos – o sujeito grandão tinha sumido – e voltou à rua, onde alguns casais retardatários voltavam para casa. Àquela hora não iria achar ônibus facilmente para Copacabana. Olhou em volta e viu que alguns táxis passavam devagarzinho pela pista, convidando algum passageiro recalcitrante. Fez sinal para um deles, um em que o motorista tinha mais ou menos a sua idade, entrou, informou o destino e deixou para trás o burburinho final da festa. A viagem pela cidade agora quase vazia foi rápida. O motorista – um botafoguense também, como deixava ver uma flâmula pendurada no retrovisor – estava feliz com a féria do dia. Aquela era sua última corrida; ia para casa descansar e só voltaria às ruas depois do meio-dia. Perguntou se a festa tinha sido boa e quando Oscar disse que estivera lá a trabalho, porque era músico, o homem o olhou com um respeito cerimonioso. Disse que gostava muito de música, mas das antigas, Silvio Caldas, Orlando Silva e Nelson Gonçalves. Quando chegaram à frente do prédio, Oscar saltou rápido, pagou a corrida e desejou um bom descanso ao motorista, que seguiu com um aceno de mão, cantando Setaneja, se eu pudesse, se papai do céu me desse... .

A rua estava tranqüila; à primeira vista, nem parecia Copacabana. Procurou a chave da porta de acesso do prédio, mas, antes de achá-la, seu olhar caiu sobre o orelhão que ficava a uns poucos passos da portaria. Não tinha telefone em casa; as contas eram altas para alguém que não telefonava para ninguém e raramente recebia algum telefonema. Por isto, andava sempre com cartões telefônicos na carteira. O olhar fixo no orelhão traía uma vontade, um ímpeto, que ele não compreendia. Melhor subir para casa, deitar e descansar. Onde já se viu um homem de sessenta e cinco anos acordado às quatro horas da manhã? O conselho pareceu-lhe ridículo, e, além do mais, não domou aquele súbito impulso. Em poucos passos chegou ao orelhão, tirou o fone do gancho – talvez esteja quebrado, aí eu não vou poder fazer nada – ouviu o sinal – perfeito, sem defeito – e discou os números, pressionando as teclas prateadas com um vigor excessivo. Depois de um instante de pausa – talvez a linha possa cair, a telefônica é tão ruim de serviço – o som agudo da primeira chamada, depois da segunda, da terceira – melhor desligar, é tarde – da quarta e, então, o clique surdo do fone sendo levantado. Estava feito. Tudo consumado.

- Alô? – a voz entre assustada e pastosa pelo sono fez as suas mãos gelarem, como se ele estivesse inteiramente nu. Tinha que dizer alguma coisa, mas não lhe vinha nenhuma palavra, nenhuma frase. Mas eram mais de quatro horas da manhã e ele tinha que dar uma razão, um motivo – por mínimo que fosse – para aquela extravagância.

- Anita... – e a sua voz saiu trêmula, assustada, um arremedo triste de si mesmo.

- Oscar? – e a voz afugentou os vestígios do sono, inteiramente atenta – Meu Deus, é tarde... que horas são?

Tarde, sem dúvida. Embora fosse manhã, as primeiras horas do dia, começo e não fim,  nascimento e não morte. Mas, de qualquer jeito, imensamente tarde.

- Anita... me desculpe... me desculpe por tudo...
E desligou, rápido. Guardou o cartão, pegou a chave e abriu a porta do prédio, fechando-a cuidadosamente atrás de si. Na mesinha da recepção, Zito, o porteiro da noite, ressonava, imóvel. Oscar nem chamou o elevador, temendo despertá-lo com o barulho. Subiu as escadas lentamente. O silêncio e a obscuridade das escadas o envolveu, como se ele estivesse entrando em um mosteiro. Chegou ao apartamento, destrancou as fechaduras e voltou a fechá-las. Estava em casa. Embora naquela noite em momento algum tivesse se sentido longe de casa. A sua casa, descobrira, não tinha paredes, portas ou janelas. E nem tinha tempo. Sentiu-se dominado por uma energia imensa, por um apetite voraz – quando acordasse, tomaria o melhor café da manhã de toda a sua vida – e por uma alegria que, igual, ele só lembrava de ter experimentado em certas épocas da juventude. Mas ele era jovem. Tinha sessenta e cinco anos. E era músico, mais exatamente pianista, e era por isto que, na sua pequena sala de estar, o espaço era quase inteiramente ocupado por um piano. Olhou o relógio; quatro e quarenta. A esta hora muita gente já estava acordada. Foi até o piano e o abriu. As teclas brancas e as teclas negras emergiram de sob a coberta de madeira como pérolas ocultas em uma concha. Sobre o móvel do piano, seu olhar cruzou com outro olhar; um olhar que vinha de um rosto de mulher, rosto oval e bem desenhado, onde olhos amendoados destilavam uma sensualidade contida. Anita fora uma mulher belíssima, ao menos ele achava. Belíssima. Pegou o porta retrato com gestos calculados, respeitosos, e o retirou de sobre o piano. Ficou com ele nas mãos, a princípio sem saber o que fazer; depois, abriu a gaveta de uma pequena cômoda em seu quarto e o colocou lá dentro, o retrato voltado para baixo.

Voltou para a sala em dois ou três passos, mas em um tempo que lhe sugeriu uma eternidade. Sentou-se à frente do piano aberto e respirou fundo, como costumava fazer quando, rapazote ainda, disputava natação. Começou a deslizar os dedos pelas teclas, despretensioso. Pela janela da sala, uma luminosidade púrpura anunciava o fim da madrugada. Dia dos Namorados. Começou a tocar Estrada do Sol, baixinho, como convinha àquela hora, e quando terminou, tocou-a novamente, e depois mais outra vez, e mais outra, até que no retângulo da janela o sol, enfim, inaugurou a manhã.                                                
                                            

                                                  
alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 13/03/2007
Alterado em 11/10/2012


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