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Atrasado. Jojoca não gostava de se atrasar para o trabalho. Mas a noite anterior foi especial. Um ano de namoro e uma comemoração pelos bares de Vila Madalena. Talvez tivesse bebido além da conta, mas valeu à pena. Silvia estava radiante e, depois de uns Martinis, chegou a falar em casamento. Ele se encolheu assustado, mas, depois, pareceu uma boa idéia e deixou o assunto correr. Gomes dizia que ele estava amadurecendo. Para Pelicano, sempre pronto a pegar no seu pé, ele precisava de uma namorada. Então, já que é assim, melhor deixar rolar.
Com a cabeça pesada, desceu correndo as escadas da estação do metrô de São Judas. Ouviu o silvar do trem chegando à plataforma, no sentido Tucuruvi. Caso o perdesse, o atraso ia ser maior. Quando saiu da escada, um tombo lhe cortou os passos, desequilibrando-o e fazendo-o cair ao chão, como se ainda estivesse bêbado.
Mas a causa da queda não foi, nem de longe, as cervejas e os uísques da noite passada. Também derrubada pelo encontrão, tentando se levantar o mais rápido possível, ele se viu diante – ou, melhor, debaixo - de uma garota com uns vinte e poucos anos, cabelos negros, olhos castanhos estreitos e sensuais, boca pequena e vermelha, um queixo bem desenhado, dividido por uma covinha que parecia feita à mão. A bela visão impediu-o de demonstrar sua irritação, mesmo depois da sirene avisar que o embarque se encerrara.
‘Machucou?’ – perguntou, estendendo a mão para ajudá-la. Ficou na dúvida se devia sorrir ou ficar sério, com aquela cara de cowboy que sempre impressiona uma mulher. Diabos! Eu sou um cara comprometido! O sorriso de Silvia o fez arrepender-se da sua esboçada – e abortada – ousadia. Então notou que o distintivo, que trazia preso ao cinto, caíra no chão. Ele o pegou e voltou a colocá-lo no mesmo lugar.
‘Você é policial?’ – a moça perguntou com o olhar atraído pelo distintivo tal um peixe diante de uma isca suculenta.
‘Sou. E para piorar, atrasado pro trabalho. ’. Antes que pudesse se desvencilhar e avançar para a plataforma, a moça agarrou-se a eles, secretando algo terrível:
‘Por favor, me ajude. Tem uns caras estranhos atrás de mim. Acho que querem me matar. ’. Jojoca olhou bem em seus olhos. Ela parecia saída de um destes filmes em que o herói – às vezes, um tira – se vê obrigado a defender uma linda mulher de uns caras perigosos e mal encarados. Jojoca adorava filmes assim; mas daí a acreditar que algo parecido ia acontecer com ele em plena estação do metrô do seu bairro era demais. Aquela menina – e não deixava de ser uma pena – devia ser doida de pedra.
‘Olhe lá... Na plataforma... ’ – ela apontou com os olhos para a extremidade direita, perto da entrada do túnel; um grandalhão, completamente careca, com uma jaqueta de couro preta, calças jeans e botas de cano baixo, olhava, vez ou outra, na direção deles. Pela aparência, Jojoca apostaria que o cara tinha uma ficha policial capaz de dar a volta no estádio do Morumbi. A moça explicou: ‘Ele me seguiu. E tem outros. Por aí. ’ – os olhos muito abertos deixavam ver o reluzir âmbar das pupilas – ‘Não me deixe. ’. Jojoca sentiu o revólver sob a camisa. Ficou mais tranqüilo e encarou o sujeito. Ele agora olhava para o chão, os braços fortes como colunas cruzados diante do peito. A moça estava pálida e a mão úmida e trêmula que segurava o seu braço testemunhava o pavor que a dominava.
‘Qual é seu nome?’ – perguntou ele, olhando em volta, procurando outros tipos suspeitos.
‘Paula. Eu era secretária de uma indústria química. Fiquei por lá quase três anos. Ontem, fui despedida. Assim, sem razão. E hoje, quando ia saindo de casa, esses caras apareceram. ’ – ela se voltou para o outro lado e seu olhar fixou-se em outro homem, mais baixo, mas não menos forte que o primeiro, com cabelos cor de fogo e óculos escuros. Ela não hesitou: ‘Aquele ali. Ele tá com o outro. Estão me cercando. Por isso eu trombei em você, porque eu estava querendo fugir daqui.’ . O homem, que estava sentado em um banco, levantou-se e se aproximou. Olhando na direção oposta, Jojoca viu que o careca olhava para eles e estava agora parado, os braços soltos ao lado do corpo, sobre a faixa amarela de segurança que se estendia pela plataforma. Paula reforçou o aperto em seu braço e, quase por instinto, ele pôs a mão sobre a coronha da arma.
‘Fique perto.’ – sussurrou puxando-a para junto dele. Tirou o distintivo do cinto e o pendurou desajeitadamente no bolso da camisa. Dali, ele era mais visível que um farol. O ruivo recuou e, logo, deu as costas para eles; parecia entretido em avistar o próximo trem surgir da escuridão do túnel silencioso. Paula observava o outro homem, que, agora, tentava falar ao celular.
‘Deve estar avisando aos outros!’ – murmurou ela. Jojoca gostaria de saber quem eram esses outros. Antes que pudesse perguntar, o trem entrou na estação e parou, com um guinchado longo e desafinado. Poucos desembarcaram e ele, de mãos dadas com Paula, entrou no vagão. Os suspeitos entraram em outros vagões. Com um solavanco suave, o trem partiu.
‘Eles vão perder a pista. ’ – disse Jojoca, observando os passageiros As mesmas caras de sempre. Gente que ia de um lado a outro da cidade, fechados em si mesmos, lendo livros ou revistas, os fios dos I-Pod dando-lhes a frágil aparência de fantoches desanimados. O metrô era o mesmo, apesar da moça linda ao seu lado.
‘Eles querem me matar. ’ – ela repetiu – ‘Sabe... Acabei descobrindo, por acaso, uns documentos estranhos. Algo relacionado com contrabando de compostos químicos. Tirei cópia de e-mails e também de umas cartas escritas em russo ou alemão, não sei bem. ’ – ela olhou para Jojoca e sorriu o mais belo sorriso possível naquela situação – ‘Agora não tenho mais medo. Você está comigo. ’.
Ele queria que Paula o acompanhasse ao departamento. Ela se antecipou: ‘Moro em Vila Mariana. Temos que desembarcar lá. Os documentos estão guardados em lugar seguro. Vou precisar deles antes de ir à polícia, não é?’. Jojoca não fazia a mínima idéia; se toda aquela história fosse real, sem dúvida os tais documentos seriam importantes como prova de algum crime. Enquanto o trem varava a distância entre as estações, Jojoca contemplava o rosto perfeito de Paula e tentava se convencer de que ela não havia pulado o muro de algum hospício. Quando o trem chegou à Vila Mariana os dois desceram. A estação estava movimentada, mas nenhum sinal dos dois sujeitos. Ainda assustada, Paula disparou para a escada, arrastando-o com ela. Uma vez na rua, ele pegou o celular e ligou. Ocupado. Ligou novamente e ao segundo toque, ouviu:
‘Gomes. ’. Jojoca suspirou, aliviado. ‘Chefe, sou eu. Tô ligando porque tô atrasado e... ’ – Gomes cortou – ‘As coisas estão tranqüilas. Algum problema?’. Jojoca teve certeza que se contasse agora o que estava acontecendo, iam achar que ele estava em plena coma alcoólica. Disse que estava tudo ok e que ele chegaria logo. Quando desligou, viu que Paula entrava em um prédio sob o olhar entediado do porteiro.
‘Eu moro aqui. Vamos subir. ’. Não era nada provável que vilões estivessem de tocaia nos elevadores ou nas escadas. Ele estava com sede e dor de cabeça. No mínimo, podia pedir um comprimido e, se fosse o caso, dar uma olhada nos tais documentos. Ela morava no quarto andar, um apartamento bem decorado, com uns quadros coloridos, móveis modernos, naquele estilo retorcido e amalucado, as paredes pintadas em um tom amarelo ovo e, sobre o chão de cerâmica, tapetes de cores vivas. Ela fechou a porta e o abraçou, afundando o rosto em seu peito. Jojoca sentiu um odor de menta em seus cabelos e o toque suave da sua pele o fez respirar mais rápido. Ela se afastou, olhou- bem nos olhos e um sorriso cristalino iluminou a boca perfeita.
‘Acho que o perigo passou. Que tal tomar um vinho, ouvir uma música ou... ’ - ela encostou os lábios em seu rosto – ‘simplesmente ficar bem juntinho... ’.
Linda. Isto era certo. Mas a dor de cabeça, a manhã quase terminada, a lembrança da noite anterior, o sabor dos beijos de Silvia e a voz grave de Gomes dizendo que ele estava amadurecendo, puseram as coisas em seu devido lugar. Ele até se esqueceu de pedir o comprimido. Mas achou bom dizer:
‘Olha, valeu te conhecer’ – deu a ela um cartão –‘Meu telefone tá aí, Caso precise de algo... Quero dizer... Essa confusão toda... ’.
Então ele a viu.
Descendo o pequeno corredor do apartamento, Silvia, com os braços abertos, sorrindo um sorriso ainda mais estupendo que todos os da noite anterior. Jojoca piscou. Que diabos estava acontecendo? Olhou para Paula, que se afastara dele, encostando-se à parede, a cabeça baixa, o rosto contraído em uma expressão de desconforto. Sem saber para qual das duas olhar e sentindo que Silvia se aproximava, ele perguntou:
‘Que é que você tá fazendo aqui?’.
E entre risos e beijos ela explicou. O encontro no metrô, a perseguição, os caras mal encarados, a indústria química que escondia segredos, não passavam de uma história que ela havia combinado com Paula – sua prima – para pô-lo à prova. Paula o esperara na estação São Judas e quando o viu chegando o circo começou. Ela nunca trabalhou em uma indústria química. E o careca e o ruivo na estação Paula os escolheu lá mesmo porque achou que tinham jeito de bandidos de filme de suspense.
‘Você sempre foi um danado! E eu queria ver se você resistiria de verdade se uma mulher bonita – que nem a Paulinha – te desse mole... ’ – e de novo aquele riso vitorioso, nauseante, estúpido – ‘ Você foi fantástico!’. 
Do corredor veio a voz abafada de Paula:
‘Desculpa. A idéia foi dela. ’ – e sem dizer mais nada, entrou no quarto, batendo a porta com força.
Silvia tentou passar os braços ao redor do pescoço de Jojoca. Mas um safanão de ombros e dois passos para trás quase a fizeram cair, desequilibrada. Ele abriu a porta e disse, entre dentes:
‘Vê se me esquece!’.
Nem esperou o elevador. Desceu as escadas ainda mais rapidamente do que no metrô, a voz alarmada de Silvia chamando-o, primeiro em tom normal, depois em gritos desesperados. Ele se sentiu tonto e a dor de cabeça piorou. E ainda lhe restava um dia inteiro de trabalho pela frente.
Malditas mulheres!
                                               *
A sala dos investigadores estava vazia. Cinco horas da tarde e ele ali, só, sem ninguém para conversar. Não que quisesse conversar com alguém, mas o zunido intermitente do ar condicionado e os telefones que tocavam em um ritmo ainda intenso faziam-no sentir deserdado não do mundo, mas de si mesmo. Tomara umas vinte xícaras de café desde o meio dia e agora seu estomago ardia. Não tinha a menor idéia do que ia fazer quando saísse do trabalho. A porta da sala abriu e Gomes olhou as mesas e cadeiras vazias e, depois de instantes, perguntou:
‘Por que não liga pra ela?’.
‘Porque acabou, entende? Não dá mais... Eu estou... Sei lá... ’.
‘Decepcionado?’. Jojoca não confirmou nem desmentiu.
‘ Se precisar, sabe onde me achar. Ah! Vá pra casa. Tá tudo bem ‘. Quando Jojoca se voltou para agradecer, Gomes já tinha ido. A sala estava quieta como uma catedral. Ele se levantou, desligou o computador e quando ia saindo, o telefone tocou. Atendeu – mais por reflexo – já que durante toda tarde nem chegara perto dos telefones.
‘Jojoca?’ – perguntou uma voz tímida, tenra e levemente assustada logo depois dele se identificar.
‘Paula?’ – Ele lhe dera seu cartão, caso ela precisasse de algo, caso os bandidos... Ridículo! Ela falou – ‘Desculpe pela bobagem de hoje de manhã. Mas a Silvia é minha prima e ela foi muito legal comigo quando vim morar em São Paulo, então, eu pensei que... E ela gosta demais de você... Então... ’.
‘Tudo bem’ – cortou ele – “Bem, eu tô de saída... Até mais! ’. – ele ia desligar quando a voz de Paula, tomada de uma urgência ofegante, chamou-o de novo. Ele manteve o fone no ouvido, mas sem dizer nada, apenas respirando, dando sinal de vida, mostrando a ela que – nem ele mesmo sabia por que – ele ainda estava lá.
‘Será que a gente podia se ver? Sei lá... Tomar um café... Conversar? ’.
Jojoca mordeu os lábios. Lembrou os cabelos negros acetinados, a covinha perfeita, os olhos cheios de luz. Linda. E tudo que ele sentia era vontade de mandá-la para algum lugar que seria impensável se fosse outra a situação. Ele a ouviu fungar. Estava chorando? Ele detestava ver mulher chorar. Mas ela bem que merecia.
‘Sair?’ – ele perguntou – ‘Pra onde? E principalmente por quê?’ – aquela era uma boa pergunta e ele tinha certeza que ela ia desligar sem responder. Ele se enganou.
‘Porque eu gostei de você. Desde que a gente trombou lá no metrô, lembra?’ – agora ela não estava chorando, mas rindo, aquele riso tímido de menina surpreendida em uma travessura.
Sim, ele lembrava.
Marcaram para dali a duas horas.
 
 
     
alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 05/03/2010
Alterado em 21/06/2011


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