Meu Diário
16/01/2015 10h00
Em Tempos de 'Je Suis Charlie'.

Em um momento marcado pelos atos de violência ocorridos em Paris no mês de Janeiro de 2015 que vitimou diversos redatores e cartunistas da revista francesa Charlie Hebdo veio à minha mente, no calor apaixonado das discussões e das - esperadas - reações dos líderes políticos mais diretamente envolvidos, a magistral obra do historiador francês Fernand Braudel "Grammaire des Civilisations' publicada em 1987, dois anos após a morte do seu autor.



Nesta obra verdadeiramente enciclopédica Braudel traça um rico painel do estudos das civilizações desde os primeiros tempos, enfocando a compreensão do termo 'civilização' sob aspectos econômicos, socilógicos e psicológicos.



Em apertado resumo, Braudel mostra que a história é, essencialmente, a história das civilizações e, nesta vertente, os choques e as influências que uma civilização exerce sobre a outra, a sua continuidade, seus processos de adaptação e mudanças, de aceitação de padrões ou de sua completa rejeição, formam o substrato indispensável para se entender a existência da humanidade desde seus primórdios.



O episódio parisiense é, a exemplo de milhares de outros que o anteceram, uma manifestação do processo sempre estressante do choque civilizatório. Epigrafá-lo como um ato de terror, embora não seja inexato, por todo, é simplificá-lo ao extremo e empobrecer a análise efeticva do fato histórico em exame.



A questão religiosa, o sistema de crenças de uma civilização, constituem elemento que pertence à estrutura fundamental de uma civilização (underlying structures) como ressalta Braudel. Também para John Gray ('Missa Negra', Ed. Record, 2009) a 'história da política é apenas um capítulo da história da religião'.



Assim, se por um lado agita-se com a bandeira da 'liberdade de expressão' como elemento essencial da liberdade, esquece-se que na mesma estrutura racional-jurídica a liberdade de credo e de religião também se insere no mesmo patamar. E temos que à liberdade de credo corresponde, igualmente, o respeito ao credo e a religião praticados por quem quer que seja.



E aqui vale a advertência de Braudel, que, ao destacar a questão das estruturas fundamentais de uma civilização, adverte que os acontecimentos do presente, ao catalizarem as paixões e interpretações do momento, cometem o desserviço de esquecer que a compreensão das estruturas básicas de uma civilização demanda a análise de um largo período de tempo do consciente e do inconsciente, gerado por séculos, de imensos grupos humanos.



E dentro deste esforço de compreensão, frisa Braudel, destaca-se a questão religiosa.



Vale transcrever, infelizmente em inglês, porque a obra não foi traduzida no Brasil, o ensinamento deste genial historiador francês:



"To perceive and trace underlying structures one has to cover, in spendthrift fashion, immense stretches of time. The movements on the surface discussed a moment ago, the events and the people, fade from the picture when we contemplate these vast phenomena, permanent or semi-permanent, conscious and subconscious at the same time. These are 'foundations', the underlying structures of civilizations: religious beliefs, for instance, or a timeless peasantry, or attitudes to death, work, pleasure and family life.'



(...)



'These realities, these structures, are generally ancient and long-lived, and always distinctive and original. They it is that give civilizations their essencial outline and characteristic quality. And civilizations hardly exchanged them; they regard them as irreplaceable values.'.  (BRAUDEL, Fernand. 'History of Civilizations, Tradução para o ingês de Richard Mayne, Penguim Books, 1993, pág. 28).



Esta compreensão leva a pôr em dúvida sincera a validade dos atos praticados pela revista parisiense. Não seriam tais atos a estéril insistência e arrogância de pretender desprezar, vilipendiar e criticar valores essenciais para uma civilização - no caso a muçulmana - tão digna de respeito como a civilização do Ocidente? Não seria a perpetuação dos equivocos que são cometidos neste terreno desde o século XI?



Braudel parece ofertar uma receita de entendimento sobre o tema. Ou ao menos a advertência de que não devemos, a respeito de uma questão tão antiga, complexa e plena de nuanças, abraçar a opinião do momento, a versão trabalhada por centros de interesse e de poder.



A morte e a perda de vidas humanas é sempre lamentável e trágica. Mas também aí existe sempre um outro lado a ser analisado.



Publicado por alexandre gazineo em 16/01/2015 às 10h00