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O inspetor Gomes desapertou a gravata, calor de verão novo, e olhou o corpo caído no beco. Perguntou ao sujeito magrelo da perícia:

‘O que houve?’.

O homem deu de ombros, mas respondeu, como quem cumpre uma obrigação:

‘Suicídio’ – e olhou para cima, para o telhado do prédio de três andares que ladeava a viela suja – ‘Se jogou lá de cima’.

Outro sujeito, mais cheio, baixo, de pernas cambotas, falou, a voz grave e contristada:

‘O senhor precisava era ter ouvido as últimas palavras do infeliz’ – e olhou para Gomes, ar de autoridade – ‘Eu achei o corpo. Ainda tava vivo quando eu cheguei Eu ouvi!’.

Gomes ficou esperando. O gorducho se aproximou e sussurrou em seu ouvido. Depois foi embora, balançando a cabeça e o corpo de João Teimoso.

O resto da tarde Gomes passou em um banco do Parque da Luz, deixando o olhar vagar entre as árvores antigas e frondosas, os caminhos serpentenando entre jardins, a silhueta austera do prédio da Pinoteca lançando uma sombra acolhedora sobre o banco onde ele se encontrava. Embora a uns poucos metros da Delegacia, aquele lugar parecia existir em um outro plano, talvez outro sistema solar e, por isto, sempre que podia - ou quando o peso das circunstâncias aumentava muito - ele gostava de perder-se por ali, quieto e sem ser notado e - principalmente, porque justamente aí estava e esperada exceção - sem notar ninguém.

Duas crianças passaram correndo Acompanhou-as com o olhar. Crianças. Se você fizer uma enquete em qualquer lugar do mundo e perguntar qual o crime que as pessoas acham mais terrível, sem dúvida a resposta será 'homicídio'. Mas ele já estava há anos na Homicídios, vira os casos mais estranhos, os motivos mais insanos para se tirar a vida de alguém, mas, em certas ocasiões, o crime lhe parecera quase inevitável, um resultado lamentável de uma série de equivocos, um grito de desespero ou de desabafo. Certas vezes - e ele tremia só de pensar - o homicídio parecia justificado.

Mas o roubo... Ah! esse seria o mais odioso dos crimes. Porque somos vítimas dele desde que nascemos; somos apresentados à infância, onde quase tudo pode ser ap
enas prazer e delícia e, mesmo no pior dos mundos, uma chama talvez celestial ilumina o caminho tortuoso dos pequenos. Mas aí crescemos - só um pouquinho que seja - e a infância nos é roubada. Ok! Chegou a hora de conhecer a maturidade, a responsabilidade, as dores de cabeça, a ardência de uma úlcera nunca curada. E, enfim, a velhice, aquela solitária jornada cheia de dores e sombras, aquela certeza que murmura em nossos ouvidos - melhor seria estar surdo - que o fim se aproxima. Somos roubados a vida inteira. Sem perdão. Seria Deus um ladrão?

E as palavras daquele homem. A voz do sujeito em seus ouvidos, repetindo-as. Era como se ele e aquele gorducho com jeito de boneco inflável tivessem dividido, naquele beco fétido, uma herança imponderável.

Foi para casa e encontrou Helena decorando a árvore de Natal. Abraçou-a e ela disse, feliz, uma bola dourada em uma das maõs:

'Chegou cedo'.

Ele deixou o olhar rodear pela sala, até voltar à árvore, já quase inteiramente decorada. Pegou um pequeno Papai Noel, preso em um barbante verde - que é para se confundir com o verde da árvore, porque senão fica feio, sempre advertia Helena - e o amarrou a uma ponta de um dos galhos ainda sem enfeite. Depois, segurou a mão de Helena, beijou-a e perguntou:

'Já disse que lhe amo?'

'Muitas vezes!' - sorriu ela, enlaçando-o pela cintura.

'Não... Assim não... Quero dizer... Hoje... Eu disse hoje?'.

Ela negou com a cabeça, um sorriso de expectativa na boca perfeita.

Então ele disse que a amava.







alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 11/04/2007
Alterado em 29/04/2013


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