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O Gosto da Dor
Depois que adoecera, sentia um sabor peculiar em tudo que provava. A vida enchera-se de sabores, finos, intensos, particulares.

Descobriu, por exemplo, as afinidades mais íntimas entre o sabor de um gomo de tangerina e de um gomo de laranja. Aprendera com o tempo que ambas eram frutas cítricas, da família das rutáceas. Definição cara aos cientistas, mas inútil para que alguém sinta, exatamente, em que ponto essas parentes se separam e se afirmam.

A doença e a opinião do médico - é grave, o senhor não se iluda - permitiu-lhe a invasão dos domínios dos sábios e as laranjas e as tangerinas tornaram-se amigas e confidentes.

Mas não só pela boca, pelo paladar, chegava-lhe o gosto das coisas. As fotografias que guardava passaram a lhe mostrar uma infância até então desconhecida, com claros e escuros nunca antes definidos, desvelando paisagens esquecidas - ou talvez nunca vistas - e até mesmo seus pais, congelados no instantâneo de aniversários, batizados e Natais, apareciam-lhe renovados e vivos. Sorvia aquela nova infância com o mesmo prazer com que se aprecia um recomeço muito tempo esperado.

Quando a dor chegou e ele confinou-se ao hospital, sentiu que a dor - pesadelo maior dos viventes - tinha um sabor peculiar; nem doce, nem azedo, nem ácido, nem picante. A dor tinha um sabor neutro, como o da água. A dor era a dor em sua própria função de dor, e, ao desnudá-la, ao enfrentá-la como uma visitante inoportuna, acabou por expulsá-la.

Pensou, então, em como seria o sabor da morte. Sorriu. Não sabia e nem podia prever. Mas começou a afinar todos os sentidos, a exercitar paladar, tato, visão, audição, para alvejar o intangível daquela caprichosa dama. Iria pô-la nua, como uma amante, e apreciar a curva dos seus seios, a harmonia das suas coxas, a ondulação dos seus cabelos.

A morte era apenas uma questão de gosto.    



alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 17/01/2007


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